05 abril, 2020

sentimental


Simon Madrac, Man at Window



sentimental vamos chamar-lhe

porque perdia na guerra e no amor

sem aprender que sentido pode ter

desejar de outros a derrota

 

vamos supor a existência dos sonhos

do universo alternativo das noites de paz

perturbadas apenas por poemas e canções

 

vamos chamar-lhe sentimental 

porque nos dias da peste 

das cidades cercadas

abria de madrugada a janela e tomava

longamente sozinho um curto café


e não sentia o que faltasse



socorro


Paul Cézanne, Natureza Morta com Jarra de Vidro Lata de Leite Tigela e Laranja, 1880


o bilhete que deixei na mesa

da cozinha pedia que comprasses

laranjas leite magro manteiga

dos açores o melhor dos dias

era o fim quando voltavas

e ninguém podia adivinhar

o mal que tinhas evitado




16 março, 2020

cidades do interior


Chiharu Shiota, A Room of Memory, 2009


são vastas as cidades do interior

de noite corremos as ruas ao abrigo da luz 
paramos nas praças  onde o coração se encontra
perdemos partidas 
esperamos rejeições
cometemos crimes perfeitos 
sem pena nem pesar

entre a chuva de setembro e a estação incerta
quando os olhos se fecham para achar caminho
é a música das cidades que faz o vento
e a sorte de quem vem ao acaso 
achar fortuna

são vastas as cidades do interior
e não se encontram nos mapas
ninguém delas parte sem perder a memória




29 fevereiro, 2020

isto não é (sobre sentir)

Daniel Silver, "Wade and Chris", 2018




os versos que te escrevo existem (como se tu

existisses) entre espaços vagos

não vazios

 

derivam do silêncio todos os sentidos

o que dizem é maneira de fazer

(a boca os braços o abismo)

a língua numa ferida

 

isto não é sobre sentir sobre falar

é a distância de um abraço



02 novembro, 2019

nenhuma sorte de saber




Richard Serra, Junction (2011) e Cycle (2010)







nenhuma sorte de saber
pode salvar-te ao menos isso
deves lembrar

tudo o que aprenderes
pode prender-te



01 novembro, 2019

foi





Joan Mitchell – Cypress (Díptico) 1975




um dia vão escrever foi
depois do teu nome
e será o dia mais feliz
da tua morte

o dia a seguir já não será de ti
sombra sequer 
só um sussurro entre ciprestes




30 junho, 2019

farol



J.M.W. Turner, ‘Bell Rock Lighthouse’, 1819




1

recolho da chuva os cães a roupa da semana

subo ao quarto onde durmo entre livros

e lembranças ao canto um fogo arde



2

o jantar é o resto de outro jantar

sabe só ao hábito de matar a fome

e demorar a morte



3

com a cabeça na mão de semear

tormentas acendo uma janela

toda a gente sabe o mal que a noite faz

os barcos que destrói


Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...