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31 julho, 2017

Uma certa queda

Escultura de Jorge Marin




Aprendi a calcular pela ponta
dos medos, sei de cor a distância entre o amor
e o quadrado das histórias, o ângulo
agudo da dor, a certa circunferência
da lembrança. Nada que me sirva
na hora de saltar.

De uma grande altura não posso ver
o local da queda, adivinho o impacto
provável, a segura indiferença dos elementos
o ar em fuga ou a asa em fogo
a solidez da água ou da terra por fim
onde posso pousar como se eu fosse dela
e minha fosse a lei da gravidade.


27 fevereiro, 2017

Tempo




Toda a gente sabe a tralha

que se acumula numa casa

como se fosse de repente.



São muitos os relógios

parados, em todas as divisões

grandes ou maiores



todos têm sempre

aquela face indiferente



e dois ponteiros

numa hora incerta.



E nunca há tempo.


16 janeiro, 2017

Anónimo com nó (um e dois)


Kurt Schwitters, Sem título (com retrato de Kurt Schwitters quando jovem), 1937-8



1
Quando era criança, rezava o terço
e não gostava de favas. Depois
como os dias em junho a estrada
ficou maior do que a noite.

Um tímido porém nunca
se atreve demais sempre guarda
o iceberg do espanto a parte grande
do amor como um selo com saliva
mas sem carta.

2
Desembarcou de madrugada numa cidade
grande demais para encontrar o passado
escondeu-se de vez. Fui encontrá-lo
sem cabelo numa esplanada lia o espião
perfeito, o bibliotecário de Hull, levava a vida
indiferentemente fodida do órfão
que acredita em favas.

Pagou os cafés deixou o troco guardou
o caderno as notas de leitura ligou
por fim o telemóvel apertou o nó
da garganta disse até logo só nos livros
é que a história termina antes do fim.



12 setembro, 2016

Filhos de Pandora

Liverpool

A esperança, Aurora
é o último dos males.
Não abras por isso
o coração.



Deixa correr primeiro
uma cortina até que o sol
caia no mar, vamos antes
acabar esta garrafa.
A esperança há de ser
a última gota.



É difícil dizer já é tarde
demais, está tudo fechado
é para sempre feriado
as ruas ficam eternamente a cheirar
à noite passada.



Mas não cantes mais não digas
mais nada, é só o mundo
que acaba, não abras
por tão pouco a porta de casa.



Guarda-te de gente
como eu, habitual
e obrigada, que sonha
de costas deitada no chão
e acende a luz com medo
de acordar o cão.  



A esperança é a última
a sair da festa, leva num saco
de plástico os restos do jantar
para jantar sozinha amanhã
e depois



e depois, quando já nada mais
puder acabar
em nenhum lugar
Aurora
o dia recomeça.

20 abril, 2016

Resumo da matéria

Antony Gormley, Blind Light


Tudo que aprendi tem pouca
utilidade. Não sei dar conselho
nem consolo, talvez o mais importante
seja não lembrar demais, não esquecer
tudo, fazer de conta, como os bichos
mais astutos, que a vida não tem fim
porque não tem finalidade.

Se quiseres, leva este livro
senta-te num jardim, observa
como aquilo que lês cresce
em qualquer chão e pode ser a flor
da pele, a maçã do rosto, o coração
das trevas, a corda onde o corpo
cansado se suspende sucumbindo
ao tédio das coisas triviais. 

Não sei onde fica a estação, guarda
esta chave se confias na sorte vai
pela rua de trás pelo caminho
das pedras, onde fizer noite
leva só a tua luz. 

25 março, 2016

Primeiros dias de primavera (prelúdio e fim)

George Shaw, Where First and Last Things Sound the Same, 2009

Primeiros dias de primavera, lembras
os sinais de lume quando a manhã
levantava o céu e pelo chão molhado
escorria um sol de ressaca que arrastava
as sombras da rua até ao fim.

E não havia fim, ninguém
queria fugir, a cidade inteira passava
distraída, as tardes eram iguais
e ao contrário de iguais, infinitamente
previsíveis e improváveis, não sabíamos
contar, não tínhamos razão, queríamos
futuro nenhum, amor talvez.

E de que serve saber o que se quer
quase nada é como se quer. Tomados
de surpresa caminhámos juntos
até onde o ardor calhou, junto ao mar
bebemos chá, falámos horas sem fio, choveu
ao fim da tarde e vimos como filme esquecido
o anoitecer da alma. Ainda assim sorrias
e era como se os lilases na terra morta
rebentassem outra vez.


08 fevereiro, 2016

Cloud 9 (ironic valentine)




(Antes)

Dizem que o céu é bom
para jantar, mas como
não és sócio
e estavas com pressa
ficaram mesmo ali
na primeira travessa.

De pernas para o ar
e de copos na mão
encontraram uma nuvem
para esconder a razão.
Era a nove, talvez
ou só embriaguez.

Vertigem onde a vida se perdia 
como mentira de luz.


(Depois)

Levaste por fim a sepultar
os gestos mortais, era verão
o peito ardia.

Ficou-te na boca só
um sabor a cinza, nem ouro
nem beijos guardas nem adeus
ouviste.

Uma memória é mais
um embaraço de riqueza
e a nuvem nove era só
a chave inglesa. 


11 janeiro, 2016

Todos os dias alguém

Woman sitting under a light at a bus stop: Rupert Vandervell


Todos os dias alguém
alguma coisa, parte de nós enfim
se perde.

Parte, de ir embora
de nos deixar em cacos
parte de uma história que ninguém
sabe contar.

No peito, o coração divide-se sempre duas vezes
e duas vezes mais apenas, mas fora dele
a metafórica forma dele
quantas vezes mais pode partir.

Todos os dias morre
alguém nos morre
e não podemos ser nunca mais
a coisa inteira.

Todos os dias alguém apaga uma luz
a noite sobra.   

08 janeiro, 2016

Uma coisa com penas (última canção)

Damien Hirst, The Crow

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo dormir.

Todos os dias vem pousar
no teu ombro, pousa aonde
o olhar pousou, repousa
nunca, encobre o sol, assombra
todas as lembranças, não
deixa o silêncio ser teu.

Penas o vento não leva
voam baixo querem chão
devoram a tua carne
deixam só o coração.

Dói-te um sonho de menina
morre o som na tua voz
e essa coisa com penas
que contigo quer dormir
nem deixa o sonho ser teu.

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo partir.

06 janeiro, 2016

Dia seis, de reis




Dia seis, de reis

nesta república quase nada passa


o ano sim, o mês, a ocasião


o vento pela praça e por uma sorte estreita


ao abrigo da aragem de janeiro


passa um cão


e um dia assim como outro dia


sem epifania.




(publicado como António Manuel Azevedo, em As escadas não têm degraus, nº 3,  Livros Cotovia, Março 1990)

03 janeiro, 2016

Revólver na cabeça

Sunrise, F.W. Murnau (1927)

Não é por serem verdade os versos
achados numa página da internet
que copias o poema para arremessar
à boca do inferno. Vingança talvez
a cantiga é o revólver vais fazer
uma revolução à queima-roupa
queimar a roupa da cama afogar
na banheira quem sabe o último amor.

Roubadas máximas, mínimo esforço
aforismo afora transcreves sentença, encolhes
o medo, as saudades apertam ainda e o coração
mora sozinho com um canário amarelo no terceiro andar.

Os versos falavam de quê, não importa
vinham acordar uma dor qualquer, um baixo
profundo que pulsa, impercetível pulsa
mas não pode dizer nada, pode ouvir
quase nada e quase nada pode ser.

Não precisam falar verdade os versos
basta que firam basta que rimem menos mal
com o mal que tão imperfeitamente fingem ser.

Ali em baixo passava um rio, ou riacho
acho (é fácil esquecer o que sempre é presente
mal se sente. Sabemos só o que falta
quando o tempo falta). Fala alto, esfrega as mãos
os versos também podem fazer frio
atas um fio na ponta de um pau desces
até à margem lamacenta, os pés entre mínimos
girinos, como se fosses pescar o que perdeste.

E sentado na lama viste nada claro
acendeste um cigarro
farol de marinheiros de águas doces
que até entre as mãos perdem a cabeça. 

25 dezembro, 2015

Matinal (para ouvir só)

Girl waiting in the rain, by ZU Photography
Nem tudo pode ser belo
pela manhã
mas vale a pena acordar
quando o som nasce
e a sombra se levanta.

Levas contigo um saco azul
onde a chave se perde, o relógio
pequenino, um lenço de papel
para enxugar a noite e um coração
de prata.
  
Uma nuvem vai e deixa ver
o mar, para onde as dunas descem
desoladas.

Não importa se chove, ouve só
a chuva, o comboio que não chega
a impaciência
de quem espera e tu esperas
o quê?

Ouve só
o que ninguém pode ver.
Ouviste?

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...