11 janeiro, 2016

Todos os dias alguém

Woman sitting under a light at a bus stop: Rupert Vandervell


Todos os dias alguém
alguma coisa, parte de nós enfim
se perde.

Parte, de ir embora
de nos deixar em cacos
parte de uma história que ninguém
sabe contar.

No peito, o coração divide-se sempre duas vezes
e duas vezes mais apenas, mas fora dele
a metafórica forma dele
quantas vezes mais pode partir.

Todos os dias morre
alguém nos morre
e não podemos ser nunca mais
a coisa inteira.

Todos os dias alguém apaga uma luz
a noite sobra.   

Lázaro

Hoje, muita gente vai homenagear David Bowie. Com os bons sentimentos não se deve ser cínico. Os que forem verdadeiros acrescentarão ao mundo algum bem. Escolham a vossa canção. Eu escolho aquela que tem o nome do morto que se voltou a erguer. Por isso mesmo, que não é verdade. Porque é canto de cisne. Porque tem alguns músicos de jazz de quem gosto muito. E porque sim.

08 janeiro, 2016

Uma coisa com penas (última canção)

Damien Hirst, The Crow

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo dormir.

Todos os dias vem pousar
no teu ombro, pousa aonde
o olhar pousou, repousa
nunca, encobre o sol, assombra
todas as lembranças, não
deixa o silêncio ser teu.

Penas o vento não leva
voam baixo querem chão
devoram a tua carne
deixam só o coração.

Dói-te um sonho de menina
morre o som na tua voz
e essa coisa com penas
que contigo quer dormir
nem deixa o sonho ser teu.

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo partir.

06 janeiro, 2016

Dia seis, de reis




Dia seis, de reis

nesta república quase nada passa


o ano sim, o mês, a ocasião


o vento pela praça e por uma sorte estreita


ao abrigo da aragem de janeiro


passa um cão


e um dia assim como outro dia


sem epifania.




(publicado como António Manuel Azevedo, em As escadas não têm degraus, nº 3,  Livros Cotovia, Março 1990)

03 janeiro, 2016

Revólver na cabeça

Sunrise, F.W. Murnau (1927)

Não é por serem verdade os versos
achados numa página da internet
que copias o poema para arremessar
à boca do inferno. Vingança talvez
a cantiga é o revólver vais fazer
uma revolução à queima-roupa
queimar a roupa da cama afogar
na banheira quem sabe o último amor.

Roubadas máximas, mínimo esforço
aforismo afora transcreves sentença, encolhes
o medo, as saudades apertam ainda e o coração
mora sozinho com um canário amarelo no terceiro andar.

Os versos falavam de quê, não importa
vinham acordar uma dor qualquer, um baixo
profundo que pulsa, impercetível pulsa
mas não pode dizer nada, pode ouvir
quase nada e quase nada pode ser.

Não precisam falar verdade os versos
basta que firam basta que rimem menos mal
com o mal que tão imperfeitamente fingem ser.

Ali em baixo passava um rio, ou riacho
acho (é fácil esquecer o que sempre é presente
mal se sente. Sabemos só o que falta
quando o tempo falta). Fala alto, esfrega as mãos
os versos também podem fazer frio
atas um fio na ponta de um pau desces
até à margem lamacenta, os pés entre mínimos
girinos, como se fosses pescar o que perdeste.

E sentado na lama viste nada claro
acendeste um cigarro
farol de marinheiros de águas doces
que até entre as mãos perdem a cabeça. 

25 dezembro, 2015

Matinal (para ouvir só)

Girl waiting in the rain, by ZU Photography
Nem tudo pode ser belo
pela manhã
mas vale a pena acordar
quando o som nasce
e a sombra se levanta.

Levas contigo um saco azul
onde a chave se perde, o relógio
pequenino, um lenço de papel
para enxugar a noite e um coração
de prata.
  
Uma nuvem vai e deixa ver
o mar, para onde as dunas descem
desoladas.

Não importa se chove, ouve só
a chuva, o comboio que não chega
a impaciência
de quem espera e tu esperas
o quê?

Ouve só
o que ninguém pode ver.
Ouviste?

11 novembro, 2015

Fantasmas


Conheço gente que vive em casas assombradas. Há mesmo tanta gente que vive em casas assombradas, como descobrimos nas últimas semanas em Portugal, que mais parece que vivemos num país assombrado. Geralmente não se fala disso, porque os fantasmas se tornaram tão familiares que, em circunstâncias normais, já ninguém repara. Mesmo se há visitas respeitáveis em volta da mesa de jantar, a assombração entra na conversa e nada de especial acontece. É como se o fantasma fosse de casa.

E é de casa. Todos os fantasmas têm casa. Não há fantasmas sem-abrigo. Mas onde os fantasmas em que estou a pensar, aqueles que existem mesmo, realmente se abrigam, não é entre quatro paredes e debaixo de um teto nas casas de tijolo e de cimento, mas no interior de crânios hospitaleiros. Digo de propósito crânios, e não cérebros, porque a materialidade destes fantasmas rouba algum espaço vital à massa de neurónios. A sua grande habilidade, que lhes garante a sobrevivência enquanto espécie, consiste no facto de terem uma grande semelhança com ideias e pensamentos normais.

Para não matar de cansaço a metáfora, ou hesitando já na analogia, como quem indecide o que vestir de manhã, talvez fosse melhor falar de ideias parasitas, em vez de fantasmas. Não sei bem. Observo apenas que as interessantes semanas que mediaram entre as eleições de 4 de outubro e a rejeição do governo Coelho-Portas, pela maioria dos deputados que os votos dessas eleições levaram a S. Bento, revelaram uma quantidade tão grande de reações reflexas, histéricas ou simplesmente idiotas que sobrou pouco espaço para ouvir comentários objetivos e serenos. Escutando a gritaria, e se não soubesse muito bem como a gente das políticas é dada a hipérboles do tamanho das birras do Deus do Antigo Testamento, poderia até pensar que estava iminente uma revolução comunista, com a nacionalização relâmpago de todos os sectores da economia, o fuzilamento dos grandes capitalistas e a proibição da Coca-Cola.

Ora, se bem vejo o que já mal posso ouvir, a probabilidade de os partidos da esquerda portuguesa fazerem uma nova Revolução de Outubro é quase tão grande como a do regresso da Inquisição por iniciativa dos democratas-cristãos do CDS-PP, com fogueirinhas para queimar hereges depois da missa: nenhuma delas é absolutamente impossível, mas a sua probabilidade está muito próxima do zero. Poderia aqui fazer uma demonstração histórico-matemática, mas prefiro acreditar na inteligência dos meus acidentais leitores, que talvez habitem o mesmo século que eu e já devem ter procedido à limpeza do sótão que a higiene mental impõe.


Acho que quase toda a gente exagera bastante a importância dos acontecimentos. Uns sentem agora mais esperança, outros entram em desespero, mas quase todos parecem subestimar o poder do tempo, a indiferença do cosmos e a incompetência que geralmente nos salva dos grandes desígnios. Não tarda muito, o país regressa à mediocridade em que nos sentimos todos mais confortáveis. A não ser que haja um terramoto…   

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...