08 janeiro, 2016

Uma coisa com penas (última canção)

Damien Hirst, The Crow

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo dormir.

Todos os dias vem pousar
no teu ombro, pousa aonde
o olhar pousou, repousa
nunca, encobre o sol, assombra
todas as lembranças, não
deixa o silêncio ser teu.

Penas o vento não leva
voam baixo querem chão
devoram a tua carne
deixam só o coração.

Dói-te um sonho de menina
morre o som na tua voz
e essa coisa com penas
que contigo quer dormir
nem deixa o sonho ser teu.

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo partir.

06 janeiro, 2016

Dia seis, de reis




Dia seis, de reis

nesta república quase nada passa


o ano sim, o mês, a ocasião


o vento pela praça e por uma sorte estreita


ao abrigo da aragem de janeiro


passa um cão


e um dia assim como outro dia


sem epifania.




(publicado como António Manuel Azevedo, em As escadas não têm degraus, nº 3,  Livros Cotovia, Março 1990)

03 janeiro, 2016

Revólver na cabeça

Sunrise, F.W. Murnau (1927)

Não é por serem verdade os versos
achados numa página da internet
que copias o poema para arremessar
à boca do inferno. Vingança talvez
a cantiga é o revólver vais fazer
uma revolução à queima-roupa
queimar a roupa da cama afogar
na banheira quem sabe o último amor.

Roubadas máximas, mínimo esforço
aforismo afora transcreves sentença, encolhes
o medo, as saudades apertam ainda e o coração
mora sozinho com um canário amarelo no terceiro andar.

Os versos falavam de quê, não importa
vinham acordar uma dor qualquer, um baixo
profundo que pulsa, impercetível pulsa
mas não pode dizer nada, pode ouvir
quase nada e quase nada pode ser.

Não precisam falar verdade os versos
basta que firam basta que rimem menos mal
com o mal que tão imperfeitamente fingem ser.

Ali em baixo passava um rio, ou riacho
acho (é fácil esquecer o que sempre é presente
mal se sente. Sabemos só o que falta
quando o tempo falta). Fala alto, esfrega as mãos
os versos também podem fazer frio
atas um fio na ponta de um pau desces
até à margem lamacenta, os pés entre mínimos
girinos, como se fosses pescar o que perdeste.

E sentado na lama viste nada claro
acendeste um cigarro
farol de marinheiros de águas doces
que até entre as mãos perdem a cabeça. 

25 dezembro, 2015

Matinal (para ouvir só)

Girl waiting in the rain, by ZU Photography
Nem tudo pode ser belo
pela manhã
mas vale a pena acordar
quando o som nasce
e a sombra se levanta.

Levas contigo um saco azul
onde a chave se perde, o relógio
pequenino, um lenço de papel
para enxugar a noite e um coração
de prata.
  
Uma nuvem vai e deixa ver
o mar, para onde as dunas descem
desoladas.

Não importa se chove, ouve só
a chuva, o comboio que não chega
a impaciência
de quem espera e tu esperas
o quê?

Ouve só
o que ninguém pode ver.
Ouviste?

11 novembro, 2015

Fantasmas


Conheço gente que vive em casas assombradas. Há mesmo tanta gente que vive em casas assombradas, como descobrimos nas últimas semanas em Portugal, que mais parece que vivemos num país assombrado. Geralmente não se fala disso, porque os fantasmas se tornaram tão familiares que, em circunstâncias normais, já ninguém repara. Mesmo se há visitas respeitáveis em volta da mesa de jantar, a assombração entra na conversa e nada de especial acontece. É como se o fantasma fosse de casa.

E é de casa. Todos os fantasmas têm casa. Não há fantasmas sem-abrigo. Mas onde os fantasmas em que estou a pensar, aqueles que existem mesmo, realmente se abrigam, não é entre quatro paredes e debaixo de um teto nas casas de tijolo e de cimento, mas no interior de crânios hospitaleiros. Digo de propósito crânios, e não cérebros, porque a materialidade destes fantasmas rouba algum espaço vital à massa de neurónios. A sua grande habilidade, que lhes garante a sobrevivência enquanto espécie, consiste no facto de terem uma grande semelhança com ideias e pensamentos normais.

Para não matar de cansaço a metáfora, ou hesitando já na analogia, como quem indecide o que vestir de manhã, talvez fosse melhor falar de ideias parasitas, em vez de fantasmas. Não sei bem. Observo apenas que as interessantes semanas que mediaram entre as eleições de 4 de outubro e a rejeição do governo Coelho-Portas, pela maioria dos deputados que os votos dessas eleições levaram a S. Bento, revelaram uma quantidade tão grande de reações reflexas, histéricas ou simplesmente idiotas que sobrou pouco espaço para ouvir comentários objetivos e serenos. Escutando a gritaria, e se não soubesse muito bem como a gente das políticas é dada a hipérboles do tamanho das birras do Deus do Antigo Testamento, poderia até pensar que estava iminente uma revolução comunista, com a nacionalização relâmpago de todos os sectores da economia, o fuzilamento dos grandes capitalistas e a proibição da Coca-Cola.

Ora, se bem vejo o que já mal posso ouvir, a probabilidade de os partidos da esquerda portuguesa fazerem uma nova Revolução de Outubro é quase tão grande como a do regresso da Inquisição por iniciativa dos democratas-cristãos do CDS-PP, com fogueirinhas para queimar hereges depois da missa: nenhuma delas é absolutamente impossível, mas a sua probabilidade está muito próxima do zero. Poderia aqui fazer uma demonstração histórico-matemática, mas prefiro acreditar na inteligência dos meus acidentais leitores, que talvez habitem o mesmo século que eu e já devem ter procedido à limpeza do sótão que a higiene mental impõe.


Acho que quase toda a gente exagera bastante a importância dos acontecimentos. Uns sentem agora mais esperança, outros entram em desespero, mas quase todos parecem subestimar o poder do tempo, a indiferença do cosmos e a incompetência que geralmente nos salva dos grandes desígnios. Não tarda muito, o país regressa à mediocridade em que nos sentimos todos mais confortáveis. A não ser que haja um terramoto…   

18 outubro, 2015

Maioria ou dó menor?


À gruta funda em que me abrigo das agressões do clima político e económico, chegam fracos farrapos de notícias. Tenho uma janelinha com grades no quarto dos fundos, por onde entra alguma luz natural, mas é demasiado pequena para admitir os tremendos presuntos da pátria, que através das barras de metal me chegam já fatiados, como o fiambre e o queijo com que confeciono uma frugal sandes mista sem manteiga. E não é de coisas mistas que se ouve falar? Coligações, ou assim...
Se alguma coisa entendo do que se tem passado à superfície desde o dia em que levei o nariz à rua para ir votar, a simples aritmética não se aplica ao sistema político português, que é mais sofisticado do que as simples democracias parlamentares. Os votos e os assentos no hemiciclo de São Bento não valem todos o mesmo, traduzo eu. Aparentemente, a soma dos deputados da PàF vale mais, sendo embora aritmeticamente inferior ao número dos eleitos pelas pessoas que obviamente não queriam a PàF a governar. Vale mais, portanto, ter um governo que a maioria não quer, mesmo que a maioria conseguisse formar outro governo. É democraticamente impecável. Até porque, ainda segundo a minha livre tradução da brisa outonal, há votos que só servem para eleger oposições e outros que servem para formar governos. Porque sim, dizem.
Dizem que os partidos da esquerda não podem fazer compromissos para governar porque têm programas muito diferentes. E eu pensava que era por isso que eram partidos diferentes. E que querem coisas malucas, das quais nem se pode falar na presença de pessoas de bem, porque provocam hemorragias nasais e fazem crescer cabelo na palma das mãos. Aparentemente, portanto, os partidos da direita não têm programas próprios, nem diferenças ideológicas, nem nódoa que não saia com uma boa passagem pela água benta do poder, que dissolve convicções firmes como quem revoga decisões irrevogáveis.
Não sei se as convicções da esquerda são menos solúveis, mas lembro-me de um primeiro-ministro socialista que disse que meteu o socialismo na gaveta. Nunca mais por cá foi visto. Ora, se os ditos social-democratas podem ser neoliberais, os ditos socialistas podem ser oportunistas e os sempre democratas-cristãos podem fazer o inconfessável (desde que o confessem e vão à missa comer uma bolacha sem fermento), por que é que um comunista não pode mudar de oculista?

03 outubro, 2015

O Aleixo


O meu amigo Aleixo não tem queixo. Não ter queixo é uma daquelas infelicidades anatómicas em que se repara imediatamente e que muito cedo se confundem com quem as possui. São sinédoques vivas: aquela parte saliente que, no caso do Aleixo, se salienta pela ausência de saliência, acaba por representar o Aleixo todo. O não-queixo do Aleixo é o Aleixo inteiro.

É por isso que a alcunha do Aleixo é Desleixo. O coitado carrega aquele peso a menos desde que entrou na escola e ainda por cima, onde quer que a sua alcunha chegue, precede-o a fama injusta de incúria e negligência, porque nem todos percebem a criatividade infantil do trocadilho. O Aleixo acha que a dificuldade que tem de arranjar emprego se deve ao queixo ou à alcunha. “Se calhar é verdade que uma desgraça nunca vem só”, diz ele muitas vezes, no seu amor desmesurado por máximas parvas e lugares comuns que encontra no facebook. Não adianta consolá-lo com a hipótese de o desemprego de longa duração ser atribuível à sua incompetência, ou até, quem sabe, à política de austeridade, executada por várias desgraças com bastante queixo, mas pouca vergonha.

O Aleixo, que não tem queixo, mas tem que mastigar todos os dias uma ou duas refeições, já fez tantos estágios e cursos de formação, para não perder o subsídio de desemprego, que tive que lhe emprestar a garagem para ele estacionar os diplomas. Vão dar uma linda fogueira no magusto de S. Martinho. A primeira vez que vimos o Aleixo mastigar castanhas assadas percebemos a falta que faz um maxilar inferior de dimensões aceitáveis, pelo menos quando se quer comer em locais públicos ou falar de coisas sérias.

Daí que todos o tenhamos desencorajado de se meter na política, quando um dia veio dizer-nos que se ia filiar numa certa juventude partidária aprovada pelas autoridades eclesiásticas da terra. Já lá vão uns anos valentes, mas nunca os meus dons de retórica foram tão exercitados. É claro que não mencionei uma única vez o queixo retraído como possível fator de insucesso, mas desatei uma tal saraivada de impropérios sobre as perversões da vida política e as más influências dos betos que vão a missas e comícios no mesmo dia, que até hoje o Aleixo não deixa de me culpar pelo facto de não ter chegado a secretário de estado ou diretor geral de qualquer coisa num destes governos de agora.

Olhando para algumas das caras dos políticos menores que estão fechados nos gabinetes a despachar nomeações de correligionários nas últimas semanas antes das eleições (Ah! Se as pessoas lessem o Diário da República!), quase fico com pena do Aleixo, que pode ter pouco queixo, mas não tem menos talento do que alguns narizes e testas, barrigas e traseiros que se salientam por não se salientarem em coisa nenhuma, mas usaram com astúcia fina a ficha de adesão aos partidos certos.

O meu amigo Aleixo, que não tem queixo, queria ir votar nas eleições legislativas e achou boa ideia revelar a sua opção de voto à mesa da sueca. Como não tem queixo, não levou um paf no dito, que o Rodrigues da Chica lhe atirou por cima das garrafas de cerveja, mas vai ficar fechado na cave até segunda-feira e só volta a morder alguma coisa quando nos explicar o que é que o governo fez pela porção inferior e mediana da sua mandíbula.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...