Hoje, muita gente vai homenagear David Bowie. Com os bons
sentimentos não se deve ser cínico. Os que forem verdadeiros acrescentarão ao
mundo algum bem. Escolham a vossa canção. Eu escolho aquela que tem o nome do
morto que se voltou a erguer. Por isso mesmo, que não é verdade. Porque é canto
de cisne. Porque tem alguns músicos de jazz de quem gosto muito. E porque sim.
11 janeiro, 2016
08 janeiro, 2016
Uma coisa com penas (última canção)
![]() |
Damien Hirst, The Crow |
É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo dormir.
Todos os dias vem pousar
no teu ombro, pousa aonde
o olhar pousou, repousa
todas as lembranças, não
deixa o silêncio ser teu.
Penas o vento não leva
voam baixo querem chão
devoram a tua carne
deixam só o coração.
Dói-te um sonho de menina
morre o som na tua voz
e essa coisa com penas
que contigo quer dormir
nem deixa o sonho ser teu.
É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo partir.
e vai contigo partir.
06 janeiro, 2016
Dia seis, de reis
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.
(publicado como António Manuel Azevedo, em As escadas não têm degraus, nº 3, Livros Cotovia, Março 1990)
03 janeiro, 2016
Revólver na cabeça
Sunrise, F.W. Murnau (1927) |
Não é por serem verdade os versos
achados numa página da internet
que copias o poema para arremessar
à boca do inferno. Vingança talvez
a cantiga é o revólver vais fazer
uma revolução à queima-roupa
queimar a roupa da cama afogar
na banheira quem sabe o último amor.
Roubadas máximas, mínimo esforço
aforismo afora transcreves sentença, encolhes
o medo, as saudades apertam ainda e o coração
mora sozinho com um canário amarelo no terceiro andar.
Os versos falavam de quê, não importa
vinham acordar uma dor qualquer, um baixo
profundo que pulsa, impercetível pulsa
mas não pode dizer nada, pode ouvir
quase nada e quase nada pode ser.
Não precisam falar verdade os versos
basta que firam basta que rimem menos mal
com o mal que tão imperfeitamente fingem ser.
Ali em baixo passava um rio, ou riacho
acho (é fácil esquecer o que sempre é presente
mal se sente. Sabemos só o que falta
quando o tempo falta). Fala alto, esfrega as mãos
os versos também podem fazer frio
atas um fio na ponta de um pau desces
até à margem lamacenta, os pés entre mínimos
girinos, como se fosses pescar o que perdeste.
E sentado na lama viste nada claro
acendeste um cigarro
farol de marinheiros de águas doces
que até entre as mãos perdem a cabeça.
que até entre as mãos perdem a cabeça.
25 dezembro, 2015
Matinal (para ouvir só)
![]() |
Girl waiting in the rain, by ZU Photography |
Nem tudo pode ser belo
pela manhã
mas vale a pena acordar
quando o som nasce
e a sombra se levanta.
Levas contigo um saco azul
onde a chave se perde, o relógio
pequenino, um lenço de papel
para enxugar a noite e um coração
de prata.
Uma nuvem vai e deixa ver
o mar, para onde as dunas descem
desoladas.
Não importa se chove, ouve só
a chuva, o comboio que não chega
a impaciência
de quem espera e tu esperas
o quê?
Ouve só
o que ninguém pode ver.
Ouviste?
Ouviste?
11 novembro, 2015
Fantasmas
Conheço gente que vive em casas assombradas. Há mesmo tanta gente que vive
em casas assombradas, como descobrimos nas últimas semanas em Portugal, que
mais parece que vivemos num país assombrado. Geralmente não se fala disso,
porque os fantasmas se tornaram tão familiares que, em circunstâncias normais, já
ninguém repara. Mesmo se há visitas respeitáveis em volta da mesa de jantar, a
assombração entra na conversa e nada de especial acontece. É como se o fantasma
fosse de casa.
E é de casa. Todos os fantasmas
têm casa. Não há fantasmas sem-abrigo. Mas onde os fantasmas em que estou a
pensar, aqueles que existem mesmo, realmente se abrigam, não é entre quatro
paredes e debaixo de um teto nas casas de tijolo e de cimento, mas no interior
de crânios hospitaleiros. Digo de propósito crânios, e não cérebros, porque a
materialidade destes fantasmas rouba algum espaço vital à massa de neurónios. A
sua grande habilidade, que lhes garante a sobrevivência enquanto espécie, consiste
no facto de terem uma grande semelhança com ideias e pensamentos normais.
Para não matar de cansaço a metáfora, ou hesitando já na analogia, como
quem indecide o que vestir de manhã, talvez fosse melhor falar de ideias
parasitas, em vez de fantasmas. Não sei bem. Observo apenas que as interessantes
semanas que mediaram entre as eleições de 4 de outubro e a rejeição do governo
Coelho-Portas, pela maioria dos deputados que os votos dessas eleições levaram
a S. Bento, revelaram uma quantidade tão grande de reações reflexas, histéricas
ou simplesmente idiotas que sobrou pouco espaço para ouvir comentários
objetivos e serenos. Escutando a gritaria, e se não soubesse muito bem como a
gente das políticas é dada a hipérboles do tamanho das birras do Deus do Antigo
Testamento, poderia até pensar que estava iminente uma revolução comunista, com
a nacionalização relâmpago de todos os sectores da economia, o fuzilamento dos
grandes capitalistas e a proibição da Coca-Cola.
Ora, se bem vejo o que já mal posso ouvir, a probabilidade de os partidos
da esquerda portuguesa fazerem uma nova Revolução de Outubro é quase tão grande
como a do regresso da Inquisição por iniciativa dos democratas-cristãos do
CDS-PP, com fogueirinhas para queimar hereges depois da missa: nenhuma delas é
absolutamente impossível, mas a sua probabilidade está muito próxima do zero.
Poderia aqui fazer uma demonstração histórico-matemática, mas prefiro acreditar
na inteligência dos meus acidentais leitores, que talvez habitem o mesmo século
que eu e já devem ter procedido à limpeza do sótão que a higiene mental impõe.
Acho que quase toda a gente exagera bastante a importância dos
acontecimentos. Uns sentem agora mais esperança, outros entram em desespero,
mas quase todos parecem subestimar o poder do tempo, a indiferença do cosmos e
a incompetência que geralmente nos salva dos grandes desígnios. Não tarda
muito, o país regressa à mediocridade em que nos sentimos todos mais confortáveis.
A não ser que haja um terramoto…
18 outubro, 2015
Maioria ou dó menor?
À gruta funda em que me abrigo das agressões do clima político e económico,
chegam fracos farrapos de notícias. Tenho uma janelinha com grades no quarto
dos fundos, por onde entra alguma luz natural, mas é demasiado pequena para admitir
os tremendos presuntos da pátria, que através das barras de metal me chegam já fatiados,
como o fiambre e o queijo com que confeciono uma frugal sandes mista sem
manteiga. E não é de coisas mistas que se ouve falar? Coligações, ou assim...
Se alguma coisa entendo do que se tem passado à superfície desde o dia em que
levei o nariz à rua para ir votar, a simples aritmética não se aplica ao
sistema político português, que é mais sofisticado do que as simples
democracias parlamentares. Os votos e os assentos no hemiciclo de São Bento não
valem todos o mesmo, traduzo eu. Aparentemente, a soma dos deputados da PàF
vale mais, sendo embora aritmeticamente inferior ao número dos eleitos pelas
pessoas que obviamente não queriam a PàF a governar. Vale mais, portanto, ter
um governo que a maioria não quer, mesmo que a maioria conseguisse formar outro
governo. É democraticamente impecável. Até porque, ainda segundo a minha livre
tradução da brisa outonal, há votos que só servem para eleger oposições e
outros que servem para formar governos. Porque sim, dizem.
Dizem que os partidos da esquerda não podem fazer compromissos para
governar porque têm programas muito diferentes. E eu pensava que era por isso
que eram partidos diferentes. E que querem coisas malucas, das quais nem se
pode falar na presença de pessoas de bem, porque provocam hemorragias nasais e
fazem crescer cabelo na palma das mãos. Aparentemente, portanto, os partidos da
direita não têm programas próprios, nem diferenças ideológicas, nem nódoa que
não saia com uma boa passagem pela água benta do poder, que dissolve convicções
firmes como quem revoga decisões irrevogáveis.
Não sei se as convicções da esquerda são menos solúveis, mas lembro-me de um
primeiro-ministro socialista que disse que meteu o socialismo na gaveta. Nunca
mais por cá foi visto. Ora, se os ditos social-democratas podem ser neoliberais,
os ditos socialistas podem ser oportunistas e os sempre democratas-cristãos podem
fazer o inconfessável (desde que o confessem e vão à missa comer uma bolacha
sem fermento), por que é que um comunista não pode mudar de oculista?
Subscrever:
Mensagens (Atom)
Instantes
1 Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos. Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...
-
1 Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos. Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...
-
O título deste texto não exprime a minha irrelevante opinião sobre sentimentos e afetos. Muito menos é o resultado de qualquer cálculo sobr...
-
Simon Madrac, Man at Window sentimental vamos ch amar-lhe porque perdia na guerra e no amor sem aprender que sentido pode ter desejar ...