09 abril, 2024

Instantes



1

 

Diziam, pela calada agonia

dos instantes

que eram mudos.

 

Julgavam-nos

pela constância infinita

das lamentações

pelo fôlego breve do pássaro

da memória

pela imponderável língua

do seu canto.

 

 

2

 

Pequenas graças

enormes infortúnios

diziam e partiam

das vidas breves

suplícios.

 

 

3

 

Perdeu-os talvez

o último pecado

a pequena virtude dourada

do silêncio

dos que sempre atrás ficam

e ninguém nunca

há de lembrar.

 

 

4

 

Aos mais audazes

chamaram em segredo.

Vestiam outros modos

para os densos sentidos

pousavam longas asas

sobre incolores destinos.

 

 

5

 

A luz de ligeiro passo

mal despertaria

as sombras

do ligeiro sono.


28 março, 2024

Arde

Mark Rothko, Number 14 (1960)

Arde calma a culpa

como a tarde cai.

 

Arde melhor

o que não podes ver.

 

Por baixo da terra atos

omissões.

 

O amor que não vês

também arde melhor.

 

Devagar

sob cinzas

aquece a casa

quando o coração anoitece.

 

18 março, 2024

Sem título (em caso de dúvida)


 

Marc Chagal, Homenagem a Apollinaire (1921)

      Marc Chagall, Homenagem a Apollinaire (1912)


Sabemos pouco e sonhamos mal

e nesta abundante insuficiência cabe bem

a vida breve, os dias sem rasto

sem rosto de gente, sem o abrigo

dos abraços.

 

Quantos enganos fazem as nossas certezas

de que luz precisa a noite dos encontros.

 

Se achares respostas

guarda nesta caixa uma dúvida

 

05 abril, 2020

sentimental


Simon Madrac, Man at Window



sentimental vamos chamar-lhe

porque perdia na guerra e no amor

sem aprender que sentido pode ter

desejar de outros a derrota

 

vamos supor a existência dos sonhos

do universo alternativo das noites de paz

perturbadas apenas por poemas e canções

 

vamos chamar-lhe sentimental 

porque nos dias da peste 

das cidades cercadas

abria de madrugada a janela e tomava

longamente sozinho um curto café


e não sentia o que faltasse



socorro


Paul Cézanne, Natureza Morta com Jarra de Vidro Lata de Leite Tigela e Laranja, 1880


o bilhete que deixei na mesa

da cozinha pedia que comprasses

laranjas leite magro manteiga

dos açores o melhor dos dias

era o fim quando voltavas

e ninguém podia adivinhar

o mal que tinhas evitado




16 março, 2020

cidades do interior


Chiharu Shiota, A Room of Memory, 2009


são vastas as cidades do interior

de noite corremos as ruas ao abrigo da luz 
paramos nas praças  onde o coração se encontra
perdemos partidas 
esperamos rejeições
cometemos crimes perfeitos 
sem pena nem pesar

entre a chuva de setembro e a estação incerta
quando os olhos se fecham para achar caminho
é a música das cidades que faz o vento
e a sorte de quem vem ao acaso 
achar fortuna

são vastas as cidades do interior
e não se encontram nos mapas
ninguém delas parte sem perder a memória




29 fevereiro, 2020

isto não é (sobre sentir)

Daniel Silver, "Wade and Chris", 2018




os versos que te escrevo existem (como se tu

existisses) entre espaços vagos

não vazios

 

derivam do silêncio todos os sentidos

o que dizem é maneira de fazer

(a boca os braços o abismo)

a língua numa ferida

 

isto não é sobre sentir sobre falar

é a distância de um abraço



Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...