11 agosto, 2016

Até o céu precisa de porteiro




O verão vai quente e o cérebro lento, pelo que até as notícias mais importantes podem levar algumas semanas a desbravar a curta distância entre os sentidos e a consciência. Eu até vejo, ouço e leio, mas abate-se-me sobre o crâneo tal canícula, percorre-me o corpo um torpor tal, que muitas das coisas que deveriam realmente interessar-me são levadas pela maré antes de o gelo da caipirinha derreter. Mas cedo ou tarde, ébrio ou sóbrio, vou-me dando conta das momentosas ocorrências que engordam os títulos dos jornais e agitam o estio dos portugueses. 

Só agora me amanheceu, por exemplo, a felicidade arenosa em que o país se rebola desde princípios de julho. De repente, parece que há portugueses a ganhar imensas coisas improváveis e eu nem tinha dado conta dos alvores do quinto império. Que faz bem à alma ver o mérito de alguém recompensado, não tenho dúvida. Então quando uma pessoa dedica uma vida inteira a aperfeiçoar qualidades, a aprofundar conhecimentos e atinge depois os cumes da fama e do proveito, ou simplesmente conquista o respeito daqueles que sabem apreciar o seu talento, temos direito a ficar um bocadinho mais felizes e a sentir quase restaurada a nossa fé na humanidade. Mesmo que a recompensa mais alta de uma carreira pareça modesta, o que verdadeiramente importa é que as aptidões de cada um sejam premiadas. Já de quinto império, se me dão licença, só depois da quinta imperial.

Mas esqueçam por instantes os desportistas, e até os escritores e os artistas, ou mesmo os cientistas, e todas as taças, medalhas e prémios internacionais com que se vai enchendo a arca do tesouro da mitologia nacional. Reservem uns momentos deste vosso verão azul, uns centímetros cúbicos do vossos corações vermelhos para, se quiserem até com orgulho patriótico, porem bem os olhos no modesto português que inesperadamente foi projetado para as elevadas funções de… porteiro. Digo bem, porteiro. Parece pouco. Porém, culminando uma carreira de abnegado serviço público, na qual pôs o interesse nacional acima de ambições egoístas e interesses mundanos, o nosso compatriota José Manuel foi agora reconhecido, exclusivamente, pelo enorme talento que aparentemente possui para “abrir portas” (nas palavras de um investigador da matéria citado em publicação hebdomadária). 

Pensem só no grau de especialização que não deve ser necessário para que, ao fim de décadas de denodo, alguém saiba fazer supremamente bem apenas uma das duas coisas que habitualmente se fazem com as portas. Ainda por cima, o José Manuel vai abrir portas numa instituição à qual o mundo inteiro deve estar grato pela revolução que operou nas vidas de milhões de pessoas e de dúzias de países, que descobriram finalmente as vantagens do despojamento material. A Goldman Sachs é o verdadeiro farol da conduta moral e não canoniza os virtuosos com tanta facilidade como a Santa Sé. E o José Manuel é um santo homem.

Os invejosos dirão que aquilo que o José Manuel vai fazer não é bem abrir portas, mas segurar portas abertas, talvez por causa das correntes de ar. Para isso, insistem os maledicentes, bastava usar aquela espécie de calço que se entala entre a porta e o soalho. Francamente, não sei se vejo o José Manuel a baixar-se para meter cunhas. 

Eu sei que há ainda as portas que Portas abriu, e as portinholas abertas por uns enérgicos e energéticos secretários de estado socialistas, mas vai longa a prosa e alto o sol. O país continua lindo, mas ainda não chegámos ao Brasil.


Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...